terça-feira, 26 de abril de 2016

VIVÊNCIA

Bianca Bergmam
Há vinte anos atrás eu tinha um caderno em branco,
No começo de um verão que marcou pra vida inteira!
Era como se eu soubesse que as folhas brancas, por fim,
Guardariam as histórias e as contariam pra mim.
Sim!
Há vinte anos atrás eu tinha um caderno em branco,
Eu tinha estrelas nos olhos, tinha planos de guri...
Sonhava brincar na lua, me imaginava voar
E a um metro e meio de altura, gigante eu jurava estar.
E “ái” de quem discordasse e me chamasse de “pequeno”;
Ganhava uma língua “feia” e eu, um castigo “lindo”!
Ajoelhado no sereno...
Atrás da porta dos fundos, num degrauzinho da escada,
Duas horas escrevendo: -“LÍNGUA FEIA E MALCRIADA”!
Língua feia e malcriada?!
Hoje lembrança bonita de um homem feito, taludo,
Que foi pego de surpresa por cem folhas no porão.
Numa caixa os “cacaredos”, “quinquilharias” da vó
E junto o caderno amigo, amassado, envelhecido,
Sofrido que dava dó.
O coração se espedaça, os olhos não acreditam.
Me parece que foi ontem, mas já fazem vinte anos
Daqueles dias compridos, dos meus castigos e planos,
Do metro e meio de altura, daquelas folhas em branco.
Foleando as páginas velhas, quantas histórias...
Meu Deus!
Artes pesadas, das brabas,
Onde a língua malcriada, não era nada de fato,
Talvez um simples retrato do “bom menino” que fui...
Aqui conta que um janeiro, na casa do tio Ramiro,
Com meu mano, mais três primos reunidos a tardinha,
Resolvemos ir mais longe, avançar nas brincadeiras,
Pela volta, na pedreira, uma taquara se viu
E logo um salto em altura,
Pra atravessar todo mundo pro outro lado do rio.
Banho certo, que perigo!
Mas valia correr riscos, pois era só um piá.
Piá de cabeça oca...
Piá de certeza incerta...
Piá com a alma aberta pras ventanias do mundo.
Viro a página e me lembro de uma coça bem levada.
Eu brincava de pintor.
O mano era mais novinho, nada entendia de nada,
Quando busquei uma lata pra preparar minha tinta...
Cinco medidas de água, mais umas nove de terra,
“Tava” feita a porcaria!
Que me custou uns dois dias, sem poder sentar direito
Me rebolando de dor,
Pois do chão ao parapeito das três janelas da frente
Sem perdoar nem as portas, a casa mudou de cor.
O tempo passou ligeiro...
Aguas lavaram as portas, ventos sopraram na alma.
A cabeça que era oca, hoje é recheada de mundo,
Com mil sonhos fervilhantes perpassando novos planos.
Não sonho brincar na lua.
Já voei e não gostei.
Gigante? Não sou gigante! (Nem quero ser na verdade),
Mas as estrelas dos olhos, essas sim ainda guardo
E vão se multiplicando a cada filho que vem.
O coração já mais doce, vai aninhando os pedaços.
Vou juntar os “cacarecos”, devolve-los ao porão,
Enquanto a noite se achega pra um milagre do tempo,
Pois vou contar ao caderno tudo de bom que ainda tenho,
Ver o que ele me fala, ver como tudo surgiu.
Talvez pintar minhas dores, voltar na velha pedreira,
Talvez pular de taquara pra o outro lado rio.
O rio que hoje é lembrança.
Lembrança viva e fugaz
Morando nas mesmas folhas
De vinte anos atrás.
Há vinte anos atrás eu tinha um caderno em branco...
E lhe contava em segredo tudo que a alma retém.
Hoje nas linhas azuis, na letra feia e tremida,
Pelas veredas da vida é ele que me contém.

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